AS ÁGUAS DO VELHO CHICO E AS ÁGUAS QUE FECUNDAM ATÉ O MAR MORTO
No amanhecer deste 4 de outubro, dia de São Francisco e do Rio Velho Chico, leio e reflito sobre Ezequiel 47, 1-12 — o trecho que fala da água que fecunda até o Mar Morto:
“E junto ao rio, à sua margem, de um e de outro lado, nascerá toda a sorte de árvore que dá fruto para se comer; não cairá a sua folha, nem acabará o seu fruto; nos seus meses produzirá novos frutos, porque as suas águas saem do santuário; e o seu fruto servirá de comida e a sua folha de remédio.”
(Ezequiel 47, 12).
Ao reler esse trecho sagrado, penso no nosso Rio São Francisco, na Caatinga, no Cerrado e nos povos ribeirinhos que dependem das águas e das terras da Bacia do Velho Chico.
Cerrado e Caatinga: os biomas do Velho Chico.
A Bacia do São Francisco abrange dois biomas fundamentais: o Cerrado e a Caatinga. O Velho Chico é sustentado por dois grandes aquíferos — Urucuia e Bambuí — localizados no Cerrado, cuja recarga depende das chuvas absorvidas pelas raízes da vegetação nativa.
“Estas águas saem para a região oriental, e descem ao deserto, e entram no mar; e, sendo levadas ao mar, as águas tornar-se-ão saudáveis.” (Ezequiel 47, 8).
O Cerrado é um bioma de formação complexa, sustentado por delicadas interações entre fauna e flora. Há animais que, ao digerirem sementes, quebram sua dormência — algo que nem a tecnologia moderna consegue reproduzir. Vespas, besouros e abelhas nativas são essenciais à polinização de inúmeras espécies.
“Toda criatura vivente que passar por onde quer que entrarem estes rios viverá; e haverá muitíssimo peixe, porque lá chegarão estas águas, e serão saudáveis.” (Ezequiel 47, 9).
Mas com a extinção da fauna, muitas plantas desaparecerão. E o mais grave: somos nós, humanos, os que arrancam, queimam e envenenam o solo, o ar e a água.
O santuário das águas
“Porque as suas águas saem do santuário; e o seu fruto servirá de comida e a sua folha de remédio.” (Ezequiel 47, 12).
Ao ler este versículo, é inevitável a dor. Percebemos que somos os destruidores das riquezas da Criação — da Bacia do São Francisco, das veredas, das nascentes e da diversidade de vida que elas sustentam.
O Cerrado, bioma mais antigo do planeta, já atingiu seu apogeu evolutivo. Isso significa que, uma vez degradado, não há retorno.
Sua configuração atual tem cerca de 40 milhões de anos, e seu sistema radicular profundo permite reter a água das chuvas nas regiões do nordeste de Minas Gerais, Brasília, nordeste de Goiás, parte do Tocantins e oeste da Bahia.
Essas águas infiltram-se no subsolo e abastecem os aquíferos Urucuia e Bambuí. No primeiro, armazenam-se entre os poros do arenito; no segundo, nas galerias calcárias. Assim nascem as veredas e os olhos d’água — assim nasceu o próprio Rio São Francisco, há cerca de 90 milhões de anos, junto com o Cerrado.
O bioma ferido
Hoje, as plantas nativas do Cerrado são arrancadas e os animais, expulsos. Espécies exóticas substituem a vegetação original, e o boi ocupa o espaço da fauna silvestre. São conhecidas mais de 13 mil espécies de plantas do Cerrado, mas apenas cerca de 200 conseguem ser reproduzidas em viveiros. Os aquíferos, antes responsáveis por reter boa parte das águas da chuva, hoje aproveitam apenas 20% do que recebiam. As chuvas escorrem rapidamente pelos solos desmatados, impedindo a recarga dos lençóis freáticos. Na porção do Cerrado que integra a Bacia do São Francisco, 70% das nascentes e veredas estão secas. Os aquíferos alimentadores do Velho Chico estão se exaurindo. A fauna e a flora desaparecem. A antiga fartura de peixes que sustentava os ribeirinhos já é lembrança.
O alerta do Velho Chico
Com a continuidade do modelo agrícola atual — voltado ao lucro e ao capital — a morte do Rio São Francisco é uma tragédia anunciada.
Que neste dia do Rio e do Santo São Francisco, reflitamos sobre nossa vida no planeta e sobre nossa relação com a diversidade da Criação.
Porque, como em Ezequiel, só haverá vida se houver águas que correm do santuário — as águas que fecundam, que purificam e que nos lembram da grande responsabilidade de existir.
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