POR UMA TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA NA IGREJA

 

O artigo de autoria de Paolo Trianni, professor do Centro Gregoriano de Estudos Inter-religiosos, publicado por Settimana News, em 06 de agosto de 2023, e pelo site IHU Unisinos, em em 10 de agosto de 2023,  deveria ser lido por todos os cristãos. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Francisco também será lembrado como um papa missionário. Com ele a missiologia, que já havia sido repensada durante o Concílio Vaticano II com o decreto Ad gentes e vinte e cinco anos depois com a encíclica Redemptoris missio, encontrou um maior desenvolvimento. A Exortação Apostólica Evangelii gaudium designa, de fato, uma nova ideia de missão, mais ampla, mais inclusiva e mais dinâmica. Fala de uma transformação missionária de toda a Igreja, especificando que todos os cristãos são discípulos missionários (cf. EG 119).

 

O texto do documento, em particular, delineou uma nova ideia de missão que, sem deixar de ser ad gentes, não se circunscreve ou se limita a isso. Nele se explica que a evangelização deve ser concebida de forma mais ampla, especificando que seus destinatários não são mais apenas os "gentios", mas também os povos do Ocidente que estão se descristianando. Acima de tudo, indica-se que temáticas como as velhas e novas pobrezas, as guerras, a imigração ou o diálogo inter-religioso devem ser considerados âmbitos especiais e privilegiados de missão.

 

De modo mais geral, nas páginas da exortação há um convite à Igreja contemporânea a redescobrir-se integral e globalmente missionária. Essa redescoberta centralidade da missão, aliás, essa redesignação missionária da Igreja, encontrou expressão também na constituição apostólica Praedicate evangelium, na qual o Dicastério para a Evangelização (cf. 53-68) é significativamente colocado antes daquele da Doutrina da Fé (cf. 69-780).

 

A missiologia hoje

 

A Igreja é por natureza missionária (cf. Ad gentes 2). Ao prolongar a encarnação de Cristo, a missão coincide e se identifica com a própria Igreja. Entendida como realização das palavras e das obras de Cristo, a atividade missionária acompanhará sempre o caminho eclesial. Mas, tendo mudado o horizonte da missão, hoje mudou a figura do missionário e mudaram as suas funções.

 

O horizonte histórico-social, mas também teológico, que serve de pano de fundo aos novos cenários missionários, mudou em virtude da globalização, dos fluxos migratórios, da revolução digital, do secularismo, da diferente avaliação teológica que se dá às outras culturas e tradições religiosas. O paradoxo marcante é que hoje somos concidadãos de povos vindos de terras a serem evangelizadas, enquanto muitos cristãos se convertem às suas religiões. De forma igualmente paradoxal, o desenvolvimento tecnológico tornou a Igreja conhecida, pelo menos parcialmente, em todo o mundo, enquanto Cristo se tornou uma espécie de desconhecido para muitos dos batizados.

 

Uma primeira consequência desse novo cenário é que a missão não pode mais ser ligada ao paradigma geográfico. De fato, existe a necessidade de missão onde quer que a palavra de Cristo seja ignorada, e essa ignorância não diz respeito apenas a terras distantes, mas também às nações ocidentais. A categoria paradigmática que acompanha a missão hoje, portanto, no lugar do "onde", é aquela do "contexto". Dentro destes últimos, porém, por se referirem a dois âmbitos distintas, convém fazer uma distinção entre aqueles cultural-religiosos e aqueles existenciais.

 

Consequentemente, a figura do missionário também mudou. No imaginário coletivo, de fato, o missionário é alguém “que parte”, mas a nova missiologia explica que o missionário também é “quem fica”. Por isso, a tarefa que o espera também é diferente, porque hoje quem se empenha na própria cidade em uma ação pastora de eficaz contraposição à descristianização, é tão missionário quanto aquele que deixa a sua terra para implantar novas Igrejas.

 

missiologia contemporânea não pode deixar de considerar esses novos horizontes e essas várias transformações que modificaram as formas e os conteúdos da missão, tornando uma matéria, já complexa, ainda mais articulada. Em si mesma essa disciplina – como demonstra o fato de que a missiologia não é uma simples cátedra, nem uma mera licença, mas uma faculdade universitária propriamente dita – faz compreender o quanto a preparação para ela requer uma formação autônoma e competências totalmente específicas em relação à formação que é programada na faculdade de teologia.

 

Ao mesmo tempo, porém, a missiologia não é outra teologia, mas uma teologia contextual, uma teologia encarnada, uma teologia que não se desvincula do ambiente em que atua, mas entra em relação com ele e a por ele se deixa formar e moldar.

 

Enquanto para a teologia os contextos são marginais, para a missiologia são essenciais, aliás, são a sua razão de ser. Em outras palavras, a missiologia nada mais é do que a teologia da Igreja em saída. Tem um ritmo tangencial, não radial, é centrífuga e não centrípeta. Pela sua natureza epistemológica, quem se ocupa dessa disciplina deve estar atento não só à defesa da Tradição, mas também ao mundo, à pluralidade das culturas, às diferenças substanciais das religiões, às complexidades sociais, às tragédias humanas e morais que atravessam a história.

 

Estuda-se missiologia para tornar-se cristãos que sejam cidadãos do mundo; para enfrentar os problemas do nosso tempo; para adquirir competências e instrumentos que permitam evangelizar todo âmbito da esfera humana.

 

A virada “inter gentes

 

Ainda há terras a serem evangelizadas e nações que ignoram o Evangelho. Associar o termo ad gentes à missão é, portanto, legítimo e conserva o seu valor. No entanto, no nosso tempo a missão não é só “para” os povos, mas também “entre” eles, dentro de suas culturas e religiões.

 

missão hoje passou de uma inculturação que era percebida como colonialista, invasiva e extrínseca, para uma missão que busca valorizar plenamente as outras tradições culturais. De uma missão coincidente com uma idealista reductio ad unum que acabava por reduzir o outro a si, a Igreja passou para uma missão que não se adapta simplesmente às culturas, mas as assume e as torna parte de si. Por isso de uma inculturação caracterizada pelo sintagma ad gentes passou-se a uma interculturalidade qualificada como inter gentes. Não mais apenas uma teologia que nasce no Ocidente e se move "de Roma" para as gentes, mas também uma teologia das Igrejas locais e das "periferias" que retorna ao "centro" e estimula, enriquece e aumenta a Igreja universal.

 

Jules Monchanin denominava essa dinâmica missionária de "teologia da troca". O ritmo da interculturalidade, aliás, é o mesmo da intersubjetividade típica do personalismo cristão. No encontro com o outro, sobretudo com civilizações milenares que expressam grandes valores éticos e espirituais, a Igreja está inevitavelmente destinada a mudar e crescer. Mesmo que não se possa generalizar, e nem sempre é fácil, a presença missionária diante dessas antigas civilizações percebe que não é chamada apenas para ensinar, mas também para aprender. Entende que não só tem algo para dar, mas também algo para tomar, aliás, para receber. A missão inter gentes, do ponto de vista da teologia da troca, é chamada não só a informar, mas também a informar-se, não só a inculturar, mas também a interculturar-se.

 

O crescimento das comunidades eclesiais locais e o desenvolvimento das teologias contextuais estão determinando precisamente um movimento inverso, porque agora muitas vezes são as periferias que enriquecem e alimentam a Igreja universal. O efeito dessa nova compreensão da missão é o nascimento de uma Ecclesia que não é mais eurocêntrica, mas multicultural.

 

A origem desse processo remonta ao Concílio Vaticano II e à sua inédita valorização das culturas e das religiões, que não são mais vistas como um mal a eliminar, mas como uma riqueza a acolher. Por trás da nova atitude havia um fundamento teológico, a premissa de que o Espírito "já atuava no mundo antes de Cristo ser glorificado" (AG 4), e a ideia de que o Verbo de Deus, antes de se fazer carne, já estava no mundo como luz verdadeira que ilumina todo homem (cf. GS 57).

 

O resultado lógico foi que hoje, entre as tarefas de ser missionário, está a de reconhecer e discernir o que o Espírito de Deus atuou entre os homens antes e fora da Igreja visível. De fato, dando mais um passo conceitual de não pouca relevância, a teologia missionária utiliza tais testemunhos para repensar a própria identidade da Igreja. Por outro lado, promover uma Igreja em saída implica necessariamente abertura e disponibilidade para a mudança.

 

cristianismo, de fato, não pode ser definido a priori, e a identidade da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém, sempre foi uma identidade aberta. Desse movimento de abertura, por mais complexo que seja, é afinal legítimo esperar não uma relativização da fé, mas uma sua potencialização. Do fato de que toda a Igreja é missionária, segue-se que toda a teologia também o é e deve estar envolvida nesse processo de crescimento identitário. Desse ponto de vista, a principal dificuldade do trabalho conceitual do missionário consiste, por um lado, em amortecer um sincretismo generalizado, incoerente e superficial e, por outro, em enriquecer a arquitetura cultural e teológica da Igreja. O missionário é o primeiro a ser chamado não a uma evolução do dogma, mas a um “desenvolvimento da doutrina” e à superação do “sempre se fez assim”, para citar as palavras do Papa Francisco.

 

No fundo, a missão não é mais só anúncio, mas também escuta. Se no passado a Igreja modelou as outras civilizações, agora também está aberta a se deixar modelar por elas, porque a evangelização se tornou permeabilidade recíproca, intercâmbio, interdependência. Altamente simbólico e significativo, a esse respeito, é o convite que João Paulo II dirigiu aos teólogos, pedindo-lhes que aprendessem a linguagem e a sensibilidade cultural da civilização indiana (cf. Fides et ratio 72).

 

Por outro lado, fazer missão não pode significar destruir as culturas. O que questiona a Igreja missionária contemporânea, no máximo, é como ela pode anunciar o Evangelho preservando-as. Ela se pergunta como pode salvá-las e ao mesmo tempo assumi-las e integrá-las. De fato, a essência do movimento missionário não consiste em uma mera e superficial adaptação, mas em assimilar, adquirir e ultrapassar os costumes de todos os povos. Quando um missionário se encarna numa determinada cultura, assume a tarefa de se tornar um "vaso comunicante" e, mais ainda, um "catalisador" que permite que as Igrejas dos diversos contextos culturais se desenvolvam com autonomia.

 

É claro, portanto, que o missionário, se não for proveniente das terras onde atua, deve ser um profundo conhecedor das tradições e das religiões que pretende evangelizar. Só assim poderá operar não um simples diálogo intercultural e inter-religioso, mas um autêntico diálogo intracultural e intrarreligioso. De fato, o missionário é chamado a ter uma relação real com os povos que o acolhem, a viver como eles, a pensar como eles, a penetrar nas dinâmicas profundas que estão na base das suas cosmologias míticas e das suas metafísicas.

 

Não raro, graças a essa imersão, o missionário torna-se um pensador original que atua como estímulo para o desenvolvimento da teologia universal. A esse respeito, deve-se enfatizar que sua teologia é sempre indutiva, exploratória e profética. É claro que, pelo menos numa primeira fase da implantação missionária, a preocupação pela exatidão dogmática ou o radicalismo seriam atitudes absurdas. O crescimento da Igreja e o seu futuro em continentes onde ainda é totalmente marginal estão ligados à superação definitiva de atitudes teológicas pré-conciliares nas quais persistem esquematismos rígidos, preconceitos, deduções preconcebidas e autorreferencialidade.

 

Em síntese, o missionário não é um simples evangelizador de terras semi-inexploradas, mas um cristão que, com o seu sacrifício existencial e o seu empenho teológico, contribui para o desenvolvimento global da Igreja, para a sua transformação e a sua universalidade. A missão inter gentes, que valoriza a vivacidade e o intercâmbio entre as culturas, exemplifica o mesmo dinamismo evolutivo da Igreja. Nesta última, de fato, é necessário distinguir entre um núcleo imutável que é sempre válido (kern) e uma casca (schale) que, ao contrário, é sempre mutável porque expressa seu mero revestimento histórico e cultural.

 

A Igreja caminha objetivamente para uma universalidade ainda por vir e pela qual o missionário é responsável. Várias metáforas foram usadas para representar esse processo. Por exemplo, aquela que traça um paralelo com os rios que deram origem às grandes civilizações. A Igreja do Jordão seria sucedida pela do Nilo e do Tibre, e agora estaríamos assistindo ao nascimento da igreja do Ganges e do Rio Azul. Ainda mais emblemática é a metáfora da semente e da árvore. Segundo essa lógica, a essência do cristianismo não estaria na semente das origens, mas sim na árvore fruto da expansão cultural da religião cristã e do filtro hermenêutico que agiu habitando e atravessando as várias civilizações.

 

Muitas vezes os missionários foram promotores e precursores de uma Igreja propriamente católica e universal, ou seja, capaz de se libertar das sujeições e dos particularismos de tempos e lugares que não lhe são essenciais. Jules Monchanin, antecipando em 30 anos uma das passagens mais fortes de Nostra aetate, afirmava que a Igreja seria capaz de integrar tudo o que há de verdadeiro e de sagrado na experiência espiritual das grandes civilizações quando teria permeado todas as raças e todas as culturas. A esse respeito, sua visão da igreja e seu programa missionário merecem ser relatados na íntegra:

 

 

"A Igreja, nos primeiros vinte séculos de sua história, foi moldada, em sua estrutura exterior, sobre a civilização ocidental: hoje, porém, a exigência de adotar como revestimento da Igreja aquele de outras civilizações, implica algumas renúncias, um retorno às origens, uma dissociação do essencial do acidental e, sobretudo, uma interiorização através de uma intensa vida contemplativa, um primado da mística sobre a liturgia, a teologia, a filosofia religiosa e as instituições”.

 

 

Convém olhar com esperança para essa teologia da troca. Uma apropriação mais profunda dos significados ocultos contidos na palavra de Jesus passa por essa dinâmica missionária que permite descobrir riquezas insuspeitadas no Evangelho. Uma missionariedade teológica marcado pelo intercâmbio tem o duplo valor de repensar criticamente as religiões à luz do cristianismo e de repensar este último à luz de sua milenar riqueza sapiencial.

 

Por outro lado, se a Igreja é missionária por natureza, é também naturalmente em saída, naturalmente dialógica e naturalmente inclusiva. A imposição eurocêntrica da missiologia do passado, portanto, deixou espaço hoje para uma missão que não é mais meramente unidirecional, porque a Igreja entendeu que em outras civilizações o Espírito semeou dons que ela pode valorizar. Tal movimento, típico de uma Igreja autenticamente em saída, não deve ser visto como um perigo para a doutrina, mas como uma oportunidade para amadurecer uma identidade mais ampla e uma maior consciência das verdades cristãs.

 

Papa Francisco também quis sublinhar que o encontro com a diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja (cf. EG 117), acrescentando que “uma só cultura não esgota o mistério da redenção de Cristo” (EG 118) e reafirmando que é impossível pretender que todos os povos de todos os continentes imitem as modalidades adotadas pelos povos europeus para expressar sua fé cristã (cf. EG 118).

 

abertura da Igreja a novas culturas e religiões, como as do Oriente, pode ser tão decisiva para o cristianismo como foi, para a Igreja primitiva, a passagem do seu lugar originário no contexto do judaísmo para o mundo greco-romano porque, como aconteceu na época, poderia ser igualmente funcional para uma melhor compreensão dos mistérios da fé e sua dogmatização.

 

No entanto, é preciso reconhecer que esse processo de crescimento universalizante levará muito tempo. De fato, deve-se admitir que, depois de 20 séculos, a mensagem cristã foi "metabolizada" essencialmente apenas pela cultura greco-romana. Ainda que essa passagem tenha sido impressionante, e mesmo extraordinária, é evidente que o amadurecimento do cristianismo não pode se limitar a essa única "metabolização". A fé cristã, antes de atingir o cumprimento final que abrace todo o mundo e todos os povos, terá necessariamente que se confrontar com outras civilizações, especialmente aquelas mais antigas e prestigiosas.

 

Se esse parece ser o destino do cristianismo, também é necessário reiterar sua transcendência em relação a toda civilização. De fato, a Igreja não se identifica com nenhuma cultura particular porque simplesmente as habita, as atravessa e as transfigura. Sua função é fazer morrer e fazer renascer toda civilização. Esse é o ritmo missionário da Igreja em saída, que não pode deixar de refletir a aufhebung hegeliana, ou seja, orientado à conservação do antigo transformado e iluminado por dentro. Em suma, se pode ser considerado excessivo falar de missão apenas em termos de libertação da fé cristã dós "laços" da cultura ocidental, é em todo caso evidente que a Igreja caminha para uma universalidade que é a primeira tarefa do discípulo missionário realizar.


A virada pastoral

 

Sobre as mudanças de que é objeto a missão, já tratava a e encíclica Redemptoris missio. O novo contexto globalizado, secularizado e multirreligioso que se criou estimula a Igreja a ser não menos missionária, mas mais missionária, precisamente porque a impulsiona a sê-lo de forma mais ampla e transversal.

 

Hoje a Igreja sabe que não deve mais ocupar-se apenas dos "distantes", mas também dos "afastados". Essa inesperada urgência pastoral surge do desencanto religioso contemporâneo, mas também do fato de religiões antes distantes se tornaram próximas e parecerem ter uma força atrativa maior do que o cristianismo. Um paradoxo atual é que são elas que convertem muitos batizados e confirmados. O homem objeto do anúncio missionário da igreja de nosso tempo, portanto, não é mais somente o "pagão", mas também o ateu pós-moderno, o relativista e o sincretista seduzido pelos exotismos da next age.

 

Essa é uma nova situação pastoral que a comunidade eclesial deve saber enfrentar e à qual deve reagir de modo eficaz. De fato, em alguns aspectos, o missionário contemporâneo é chamado não a construir a igreja, mas a "reconstruí-la", porque não se trata de implantar novas realidades, mas de revitalizá-las.

 

A missão está, portanto, experimentando uma transformação pastoral, porque no anúncio evangélico não é mais fundamental a categoria do "onde" mas sim a do "para quem" e do "como". É um dado objetivo que a evangelização, no contexto atual, em muitos casos significa “nova evangelização”. Teologicamente, não se trata de dar menos importância à doutrina, mas de recuperar a sua perda de relevância, valorizando estratégias e instrumentos de comunicação que a façam voltar a ser existencialmente significativa. Disso decorre a necessidade de uma missão que saiba se renovar pastoralmente aprendendo a comunicar o Evangelho através da arte, do pensamento filosófico, do encontro dialógico e de todos os instrumentos de comunicação ligados ao desenvolvimento informático.

 

Mas a virada pastoral da missão significa também atenção e empenho ativos e responsáveis com o Reino de Deus, para que se tornem evidentes a sua justiça e a sua caridade. A missão não deve ocupar-se apenas dos "distantes", mas também dos "últimos". Essa é a razão pela qual cada paróquia, salas universitárias, escola, rua, periferias, prisões, centros de assistência a imigrantes, são hoje, para todos os efeitos, autênticos lugares de missão. Afinal, a fé não pode ser separada da prática do testemunho, e a proclamação das doutrinas não pode ser dissociada da luta contra as misérias, o desconforto social, a delinquência e a marginalização. Desse ponto de vista, o missionário, que é por excelência um cristão universal e um cidadão do mundo, só pode dizer I care diante das injustiças sociais, das várias formas de pobreza, dos direitos humanos violados, da paz ameaçada, dos desastres ambientais. A sua pauta teológica é aquela das prioridades do mundo, porque não se limita a ler e interpretar os tempos em que vive, mas neles age e atua, na medida em que, muitas vezes, está diretamente envolvido no destino dos "últimos" e compartilha suas condições de vida.

 

Desse ponto de vista, o testemunho missionário coincide com uma virada ortoprática e com uma contextualização existencial da fé. Essa é a razão pela qual, na formação do missionário, não deve faltar a aquisição de competências de gestão e liderança que lhe permitam encontrar recursos e financiamentos capazes de combater da forma mais eficaz aquele mal que ele conhece de perto e que, muitas vezes, escolheu compartilhar e assumir para si.

 

Se o risco de um redimensionamento ético da missão e de uma secularização dos valores escatológicos é sempre possível, também é preciso destacar que entre as atribuições do missionário está também aquela de demonstrar que o Reino de Deus precisa da fé, de Cristo e sua igreja.

 

A virada dialógica

 

missiologia vive uma tensão constitutiva entre diálogo e anúncio. Nem mesmo faltam teólogos que gostariam até de abolir a missão e substituí-la pelo diálogo inter-religioso. Este é, de fato, um dos pilares do teocentrismo pluralista. No extremo oposto, porém, também a exaltação do diálogo inter-religioso foi atingida por várias críticas, pois, além de expor a revelação e a verdade a uma potencial relativização, foi considerada viciada por um antropocentrismo preliminar.

 

Independentemente das críticas que ambos atraíram, missão e diálogo inter-religioso são tradicionalmente considerados antitéticos na medida em que são ordenados a dois princípios lógicos opostos. A primeira responde a um princípio revelador, enquanto o segundo a um princípio hermenêutico. A primeira está estruturalmente ligada ao que já foi dado, o segundo à pesquisa. A primeira se coloca em um pedestal de superioridade, enquanto o segundo exige um nível paritário. A primeira tem uma finalidade concreta, enquanto a deontologia do segundo exige que ele seja sem segundas intenções.

 

Apesar de sua incompatibilidade com o diálogo inter-religioso, porém, a própria missão, especialmente em meados do século passado, esteve no centro de vários ataques polêmicos. Foi acusada, por exemplo, de ser uma expressão da agressividade colonialista do Ocidente e de sua autorreferencialidade cultural; de ser objetivamente inoportuna porque os protagonistas que devem se encarregar por ela deveriam ser, no máximo, as populações indígenas e o clero local; e de relevar-se não essencial e não necessária, uma vez que a salvação é possível para além dos confins da igreja.

 

Encontrar uma solução para a tensão que divide essas duas instâncias irredutíveis não é simples, requer um pensamento complexo e a superação de esquemas lógicos binários, reducionistas e elementares. Deve-se por como premissa, porém, que os próprios documentos do magistério reconhecem como o diálogo inter-religioso faça parte da missão evangelizadora da Igreja e não esteja em contraposição com a missão ad gentes (cf. RM 55). A mesma encíclica, porém, indicava também que não são equivalentes, não são intercambiáveis e não devem ser confundidos ou instrumentalizados (cf. RM 55).

 

Analisando bem, portanto, o diálogo do qual fala Redemptoris missio não pode ser definido como diálogo em sentido próprio, porque tem como premissa uma verdade que o magistério não pode colocar em discussão e uma segunda finalidade implícita representada pela intencionalidade objetiva de converter o outro.

 

No entanto, existem pelo menos três caminhos lógicos pelos quais a missão e o diálogo inter-religioso podem ser considerados complementares e funcionais entre si sem entrar em contradição.

 

primeiro deles poderia ser definido como um argumento inclusivista, e encontra seu fundamento naqueles documentos do Concílio que reconheceram a presença do Espírito e de sementes da Palavra também fora da Igreja. A tarefa da teologia missionária, neste ponto, coincidiria com o discernimento de tais sinais e sua exaltação. Com base nessa premissa, não é contraditório, por exemplo, que o Vaticano II tenha decidido dedicar um documento à missão e outro ao direito à liberdade religiosa, o que, num plano teórico, representa exatamente o oposto. A esse respeito, pode-se afirmar que Nostra aeate e Dignitatis humanae sejam também documentos missionários como o é Ad gentes. À luz das inovações inclusivistas do Concílio, seria até incoerente uma comunidade eclesial que não se abrisse com simpatia às outras culturas e religiões. Os documentos citados, de fato, atestam que ao ir ao encontro do outro, o cristão pode descobrir a si mesmo e a sua própria verdade, também porque no outro se encontra sempre o Outro.

 

Desse ponto de vista, a missão, entendida como posse da verdade, já não está em contradição com o diálogo, entendido como busca da verdade, porque, embora manifestada em grau diverso, trata-se da mesma e igual verdade. A missão, em virtude daquelas intuições teológicas que fundaram o inclusivismo, teria a tarefa de revelar e levar a cumprimento aquela verdade de Cristo que nas outras religiões é implícita, parcial e anônima.

 

Um segundo caminho lógico é baseado no conceito de relação. Se Deus é em si mesmo relação, de fato, e a missão é relação dialógica, então esta última já é uma expressão da verdade e, portanto, de Deus. Isso fica imediatamente vidente no plano moral, porque a ética que serve de fundamento ao diálogo é expressão evidente dos valores que caracterizam o Reino de Deus. A própria Redemptoris missio reconhecia que o diálogo é um caminho para o Reino e certamente dará seus frutos (cf. RM 57).

 

Resumindo, essas premissas indicam, como corolário, que empenhar-se no diálogo já significa ser missionários. É isso porque o diálogo coincide com a verdade (ou seja, reflete a natureza divina) e a verdade está no diálogo (ou seja, expressa os valores do Reino de Deus). Como sinal e símbolo de unidade, o diálogo pode ser feito coincidir com o bem, assim como, tradicionalmente, o mal é associado à divisão e ao conflito.

 

Desse ponto de vista, o confronto dialógico não pode mais ser nem mesmo considerado um mero “meio” para alcançar algum outro resultado ou objetivo, mas já é em si mesmo um “fim”. Se, também nesse caso, há sempre o risco da secularização teológica e de um certo antropocentrismo, é igualmente verdade, pelo contrário, que o diálogo pode ser considerado parte da revelação e sua essência. Comunica uma verdade múltipla: a natureza tripessoal de Deus que é em si mesmo relação; a kenosis de Deus logos que entra em diálogo com o homem; e a natura iniludível do diálogo para alcançar o Reino anunciado por Cristo.

Um terceiro caminho lógico que demonstra a complementaridade entre missão e diálogo, ainda que a primeira esteja vinculada a um princípio veriativo e o segundo àquele hermenêutico, é que a verdade no plano histórico nunca é dada de forma plena e evidente, consequentemente, o diálogo torna-se o instrumento que permite avançar para ela.

 

A própria revelação desvenda e esconde uma verdade, que está além e sempre a ser alcançada. Mais do que uma noção, coincide justamente com uma procura, com um “ir para”. Nesse sentido, uma categoria que pode superar a contradição entre esses dois conceitos e ser funcional à sua harmonização é a do “já e não ainda”. A missão anuncia a verdade "já" dada, enquanto o diálogo acompanha o caminho rumo ao "não ainda".


Nesse sentido, o confronto dialógico e a hermenêutica representam os principais meios pelos quais se torna possível proceder para uma verdade que está sempre em devir e um passo à frente do homem. Se no plano existencial e salvífico a revelação comunica uma verdade plena, no plano da posse conceitual ela permanece sobranceira e inesgotável. O conhecimento de Deus, nas palavras de Paulo, é sempre per Speculum et in Aenigmate (1Cor 13,12). Na espera, portanto, que o plano escatológico entregue ao homem a verdade plena e definitiva, o diálogo – inclusive o diálogo inter-religioso – é um modo de proceder rumo a ela.

 

Em última análise, embora ontologicamente diferentes, missão e diálogo têm em comum o fato de serem ambos ordenados à verdade. O diálogo é autenticamente tal apenas e somente quando debate conteúdos de ordem religiosa. A conclusão que se deve tirar é a recíproca complementaridade que liga um confronto dialógico que, sem tratar de conteúdos teológicos, seria desprovido de substância; e uma teologia que compreendeu a necessidade do diálogo para crescer, para se universalizar e penetrar cada vez mais profundamente no mistério avassalador de Deus. É claro, em todo caso, que hoje a missão se realiza por meio do diálogo, e o diálogo é parte da missão da igreja. Entre suas funções está precisamente a de promovê-lo, desenvolvê-lo e ensiná-lo.

 

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